Americanos protestam contra julgamento da reforma da saúde dos Estados Unidos, em Nova York
Geral
02.04.2012
Ninguém sabe o que a Suprema Corte dos Estados Unidos decidirá em relação ao Affordable Care Act (Lei de Proteção ao Paciente e Serviço de Saúde Acessível). Mas, após as audiências desta semana, parece bem possível que o tribunal acabe com a exigência de que todo indivíduo faça um plano de saúde pago, e talvez até extingua a própria legislação. O fim da exigência de aquisição de seguro saúde faria com que a lei se tornasse bem menos factível, enquanto que a pura extinção da lei significaria negar cobertura de saúde a pelo menos 30 milhões de norte-americanos.
Tendo em vista o que está em jogo, seria de se esperar que todos os membros do tribunal tivessem muito cuidado ao falar sobre as realidades do sistema de saúde e sobre precedentes legais. Na realidade, porém, o segundo dia de audiências indicou que os juízes que são mais hostis em relação à legislação não entendem, ou preferem não entender, como funciona um sistema de seguro. E o terceiro dia foi, de certa forma, ainda pior, já que os juízes contrários às reformas pareceram aceitar qualquer argumento, por mais frágil que fosse, que pudesse ser utilizado para acabar com a reforma.
Comecemos pela já famosa discussão na qual o juiz Antonio Scalia comparou a aquisição de seguro saúde à compra de brócolis, querendo dar a entender que, se o governo puder obrigar o cidadão a adquirir seguro, ele também poderia forçar as pessoas a comprarem brócolis. A comparação deixou horrorizados especialistas em seguro saúde de todos os Estados Unidos, porque o seguro saúde não tem nada a ver com brócolis.
Por quê? Quando uma pessoa decide não comprar brócolis, ela não faz com que esta hortaliça torne-se indisponível para aqueles que desejam adquiri-la. Mas quando as pessoas só adquirem seguro saúde quando ficam doentes – que é o que ocorre se a aquisição não for obrigatória –, o aumento resultante do risco geral faz com que o seguro se torne mais caro, e até mesmo inacessível, para os demais cidadãos. Como resultado disso, um sistema de seguro saúde desregulamentado não funciona, e nunca funcionou.
Existem pelo menos duas maneiras de lidar com essa realidade – realidade esta que é, aliás, muito mais uma questão referente ao comércio interestadual, e portanto um objeto válido de preocupação federal. Uma delas é taxar todo mundo – tanto os indivíduos saudáveis quanto os doentes – e utilizar o dinheiro arrecadado para fornecer cobertura de saúde a todos. É isso o que fazem o Medicare e o Medicaid. A outra é exigir que todo mundo adquira seguro saúde pago, e auxiliar aqueles para os quais isso é financeiramente difícil.
Seriam essas abordagens fundamentalmente diferentes entre si? Exigir que as pessoas pagassem uma taxa que financiasse a cobertura de saúde seria legal, enquanto que fazer com que elas comprassem apólices de seguro seria inconstitucional? Não vejo por que – e não são apenas aqueles indivíduos com formação em direito que acham que tal distinção é estranha. Eis o que Charles Fried – que foi advogado-geral da União no governo Reagan – disse em uma recente entrevista ao jornal “The Washington Post”: “Eu jamais entendi por que uma regulamentação que faz com que as pessoas tenham que comprar algo seria, de alguma maneira, mais intrusiva do que uma outra que faz com que essas pessoas paguem impostos e a seguir redistribuem essa arrecadação entre elas”.
Na verdade, os conservadores usaram a ideia da aquisição obrigatória como uma alternativa para os impostos, e foi por isso que a ideia da obrigatoriedade foi proposta originalmente não pelos liberais, mas sim pela ultraconservadora Heritage Foundation (aliás, outro projeto dos conservadores – as contas privadas para substituir o Social Security – se baseia também em contribuições obrigatórias por parte dos indivíduos).
Sendo assim, houve alguma mudança real no que diz respeito à base legal? Fried acredita que tudo não passa de política – e outras discussões presenciadas durante a audiência reforçam bastante essa percepção.
Eu fiquei particularmente estupefato diante da discussão do argumento de que a exigência de que os governos estaduais participem da ampliação do Medicaid – uma expansão pela qual eles contribuiriam com uma pequena fração do total previsto pela lei – constituir-se-ia em uma inaceitável “coerção”. Seria de se pensar que tal alegação fosse evidentemente absurda. Afinal de contas, os Estados são livres para não participarem do Medicaid, se assim desejarem. O poder “coercivo” do Medicaid deriva apenas do fato de que o governo federal fornece ajuda aos Estados que estiverem dispostos a seguir as diretrizes do programa. Se alguém me oferecer bastante dinheiro, mas somente se eu fizer certas tarefas, seria isso uma forma de servidão?
Mas vários juízes conservadores pareceram defender a proposição de que uma ampliação, financiada pelo governo federal, do programa no qual os Estados decidem participar porque recebem auxílios federais seria um abuso de poder, simplesmente devido ao fato de os Estados se tornarem dependentes desses auxílios. A juíza Sonia Sotomayor parece ter ficado surpresa com tal alegação: “Nós diremos ao governo federal que, quanto maior for o problema, menores serão os poderes dele. Porque se fornecer tanto dinheiro, ele não poderá estruturar o programa da forma que desejar”. E ela tem razão: a alegação não faz sentido – a menos que o objetivo de quem a apresenta seja acabar com a reforma do sistema de saúde, utilizando para isso qualquer argumento disponível.
Conforme eu já disse, nós não sabemos o que acontecerá. Mas não dá para evitar uma sensação de que o resultado disso não será positivo, e o temor de que a crença já bastante precária da população na capacidade da Suprema Corte de manter-se acima das questões políticas venha a diminuir ainda mais.
Tradutor: UOL