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Crianças são ?adotadas? por equipes

Geral

11.08.2014

Miguel era o “xodó” do Hospital Infantil Varela Santiago. Ganhou um leito na UTI infantil desde o nascimento, por também ter sido diagnosticado como paciente neurológico. “Ele me marcou muito, porque quando cheguei da licença maternidade ele já estava aqui. Então eu vi minha filha crescer enquanto também via ele ficar aqui. É muito difícil tentar separar”, lembra a coordenadora da assistência social do Varela, Andréa Batistotti. Trabalhando 16 anos no hospital, ela relembra o afastamento gradativo da família da criança. “No começo, a mãe não saía de perto dele. A família morava em Monte das Gameleiras. Depois de quatro anos, quando ela viu que ele não ia mais sair daqui, ela engravidou e teve outro filho, disse que não tinha mais condições de vir. Começou vindo uma vez por semana, depois uma vez por mês… mas os aniversários dele ela sempre fazia”, conta. O último aniversário do garoto foi comemorado em maio, dois meses antes de sua morte. Entretanto, Miguel deixou um ‘substituto’ no Varela Santiago: o pequeno João Daniel, que completou um ano e três meses na UTI no último dia 7 de agosto. Desde o nascimento, João teve apenas cinco dias entre a liberdade e a unidade intensiva. Há mais de quatro meses não recebe visita de nenhum ente da família, que reside em Pium, distrito de Nísia Floresta. Há um ano, a assistente social Andréa Batistotti chegou a ligar para a mãe do menino informando a necessidade de documentação para que a criança fizesse um exame. O resultado foi a rispidez ao telefone. “Ela foi ríspida e falou que não podia vir ao hospital porque dependia de carro, mas não tinha”, relembra. “O que sabemos é que os pais são separados e a mãe tem problemas psicológicos. Em seis meses que estou aqui, nunca cheguei a encontrar ninguém da família visitando ele”, relata a chefe de enfermagem da UTI, Viviane Lourenço. De acordo com a enfermeira, o endereço da família e o telefone mudou, mas a atualização não foi informada ao hospital. João também mexe apenas os olhinhos. Os membros são atrofiados. A criança se comunica por sinais – quando aspira pela boca ou tem sudorese, está sentindo dor. Mas nenhum dos sinais diminui o amor da equipe composta por oito mães, que compram creme, sabonete, lençol brinquedos e dão assistência ao bebê. Na última quinta-feira (7), o Varela Santiago deu entrada para que o Conselho Tutelar de Nísia Floresta fosse em busca do pai da criança. Ele foi escoltado até o hospital e se comprometeu a retomar as visitas. “Nós conseguimos localizar o pai com ajuda dos vizinhos, ele estava no trabalho, mas a mãe não foi localizada. Ele disse que tinha feito uma visita ao menino, mas a equipe do hospital não confirmou. Agora vamos encaminhar a documentação à polícia e ao Ministério Público, que vão apurar se houve abandono de incapaz”, explicou a conselheira de Nísia Floresta, Juciê Correia. Outro caso que foi parar no conselho tutelar nesta semana foi o de Gabriel, um bebê com apenas 1 ano e 8 meses. O menino deu entrada no hospital Varela Santiago em abril deste ano, já acompanhado pelo conselho de Parnamirim. Foi diagnosticado com meningite, baixa estatura, atraso neurológico e desnutrição de terceiro grau – com mais de um ano, pesava apenas três quilos. A conselheira Rozicleide Gomes de Pontes acompanhava a família do garoto, moradora de uma comunidade carente em Parnamirim. “Foi um caso que me marcou muito. Quando cheguei, ele tinha ferimentos na face e desnutrição muito grande”, relembra Rozicleide. A mãe de Gabriel possui dez filhos – ele é o nono – e é sozinha. A conselheira afirma que ela recebe os benefícios do Governo Federal (bolsa escola, bolsa família). Segundo Rozicleide Gomes, quando a criança foi internada, a mãe também foi notificada judicialmente para visitar o menino com frequência. “Ela não aparecia no hospital há dois meses, mas já existia uma decisão judicial. Ela quer o filho, mas agora vamos avaliar se existem outras situações de vulnerabilidade para rever a guarda”, comenta. A criança, que recebeu alta na última quarta-feira (6), foi encaminhada para uma casa de acolhimento em Parnamirim. Adultos também sofrem por abandono familiar Segundo a psicóloga clínica e professora de Psicologia da Saúde da UnP, Gabriela Fernandes Moreira, existem vários fatores que levam ao abandono ou afastamento das famílias dos pacientes que estão internados. Essa “barreira” que se forma entre os entes pode ser ocasionada desde a ausência de vínculo afetivo, que inexistia desde antes da chegada ao hospital, até a sobrecarga da família, que não consegue mais lidar com as emoções. “Se a gente pensar em uma gravidez indesejada, por exemplo, o vínculo com a criança já não estava sendo construído desde a gestação”, explica. A situação de abandono também envolve muita dor mal resolvida – principalmente nos casos em que o paciente é morador de rua. Há dois meses o morador de rua José Ubaldo* ocupa um leito no setor de Ticiologia do Hospital Giselda Trigueiro. Deu entrada no hospital com tosse. A área do hospital, em que só é possível ter acesso com máscara de proteção, trata suspeitas de tuberculose. Segundo a assistente social Diana Maria Silva, o idoso naõ tem documentos. Ele diz que está nas ruas há 40 anos e não tem família. A assistência social ainda não conseguiu localizar a origem ou parentes que possam ajudá-lo. Nos casos em que a família não é localizada e o idoso não possui residência, o hospital tenta localizar uma vaga nos abrigos municipais ou casas filantrópicas. “Muitos não querem ir embora porque aqui eles têm atenção, cuidado e o tratamento que não têm nas ruas”, lembra Anna Rosa Bastos Mesquita, também assistente social do Giselda. Somente neste ano, cinco casos de abandono de idosos em hospitais foram protocolados nas promotorias do idoso que têm comarca em Natal (9ª, 30ª e 42ª). A promotora Rebecca Nunes Monta ressalta que, segundo o artigo 19º do Estatuto do Idoso, o abandono de idosos em hospitais se constitui crime com detenção de seis meses a três anos e multa. “Quando chega a notícia do hospital, nós entramos em contato com a família. É aberto o inquérito criminal pela Delegacia do Idoso e, ao mesmo tempo, providenciamos o acompanhamento ou acolhimento do idoso”, explica. “Se abandonou, esse é um indício de que o idoso já não estava sendo bem tratado”, destaca Rebecca. Segundo a promotora, nos casos de idosos de rua que não possuem o benefício (como uma aposentadoria), a Secretaria de Assistência Social tem a obrigação de conseguir uma vaga em abrigos para o acolhimento. O Hospital Walfredo Gurgel não possuía, até a última sexta-feira, nenhum caso que se configurasse como abandono. Porém, a assistente social Clivaneide
Rosário afirma que eles são recorrentes. “Para nós, o mais difícil são as pessoas sem família, que aparecem sem documento”, aponta. Mãe mostra como o amor pode ultrapassar barreiras A vitalidade inerente à Débora, de 2 anos e nove meses, contraria todos os prognósticos médicos. Diagnosticada com distrofia muscular assim que saiu do útero da mãe – doença que degenera o músculo – a menina deveria, a esta altura, ter perdido o movimento de todo o corpo. A mãe, Conceição da Silva, chegou a ser alertada. “Para os médicos, a essa altura ela deveria mexer apenas os olhinhos”, afirma. Porém, apesar de não movimentar as pernas, o tronco e os braços se agitam normalmente; ela é capaz de respirar sem auxílio de ventilação mecânica por alguns períodos, falar palavras curtas e de arrancar sorrisos de quem chega perto. Conceição – ou Ceiça, como é conhecida – fez a escolha inversa aos casos anteriormente narrados: a de se doar totalmente ao filho que nasce. Durante dois anos e cinco meses, ela deixou o trabalho de doméstica e passou a habitar uma cadeira de plástico ao lado do leito de Débora, na UTI pediátrica do Varela Santiago. Pelo tempo em que permaneceu na unidade de terapia intensiva, a pequena Débora ganhava sucessivas infecções. Fez operações de gastro e traqueostomia. Desde que nasceu, porém, Débora não toma remédios para controlar a doença, pois eles não existem. “Não existe nenhum tipo de medicamento. O médico pediu para fazer fazer uma biópsia em Recife. Eu pensava que era para ela melhorar, mas o médico só queria saber até onde ela vai. Para quê? Se for só para isso eu não quero, prefiro ficar com minha filha até quando Deus deixar”, comentou. Há quatro meses, Ceiça conseguiu o que considera a sua maior vitória: a instalação de um leito de UTI homecare (em casa), custeado pelo Governo do Estado. A pequena Débora conta com assistência em tempo integral de técnicas de enfermagem e visitas semanais da médico. No condomínio em que a família mora, em Parnamirim, as visitas à Débora são comuns. Ela aprecia e garante aos visitantes boas risadas com suas imitações. Manda beijos, engatinha e adora papel e caneta. Para Ceiça, nenhuma escolha foi tão certa quanto levar a pequena para casa. “Foi o sonho da minha vida realizado. Não é fácil estar em uma UTI todos os dias, mas eu nunca a abandonaria”, garante. Gabriela Moreira – Professora de Psicologia da Saúde da Universidade Potiguar (UnP) Quais fatores levam a família a se abandonar ou se afastar desses entes doentes? São vários fatores. Algumas pessoas que estão no hospital também são pessoas que passam por situações de abandono em casa ou na comunidade, sem construção de vínculo afetivo, e às vezes encontra na equipe do hospital esse amparo: desde a gaze e do curativo até o zelo, a conversa. Algumas não desejam nem sair do hospital. E, como a família não construiu o vínculo afetivo, essa poderia ser uma das causas do abandono. Como eu não estou vinculado, eu não me sinto responsável ou inclinado a estar perto ou ajudar. A pressão sobre a família também influi? Esse ponto é algo contraditório: uma construção de vínculo afetivo a ponto de trazer tanta sobrecarga à família com relação a cuidado que traz sofrimento para a família. Nesse caso, o ente não consegue suportar mais encarar o sofrimento todos os dias e de viver com o prognóstico de uma morte que eu não sei quando vai acontecer. Mas também é muito comum termos o afastamento do pai? Esse posicionamento é muito cultural e algo que a nossa sociedade ainda alimenta, como se fosse responsabilidade da mãe ficar ao lado do filho. Hoje já estamos repensando o lugar da paternidade, mas ainda esperamos isso, que a mulher se disponibilize. É como se fosse uma lógica que todo mundo já esperava. É muito interessante até quando um homem assume e acompanha, como a própria equipe do hospital já estranha. Como a família deve fazer para manter o equilíbrio entre não abandonar o enfermo e própria vida? É importante ter uma equipe médica integrada para explicar a família que não é necessário estar sempre lá; e ter um psicólogo que ajude a construir o revezamento do cuidador principal. É importante escolher como cuidador uma pessoa querida do paciente, que não cause desconforto, e com ela montar estratégias de revezamento. Reprodução: Tribuna do Norte